Uma amiga me disse que eu não vivia a realidade, que eu, na verdade, finco os pés numa superfície impalpável. Meus pés não me exigem solidez, a minha mente almeja que eles se fixem nalgum lugar, porém, como os pés não pensam, fazem o que desejam, são impulsionados por desejos profundos de uma alma quase que indecifrável.
O meu tempo é muito diferente da grande maioria. A constância me desnorteia, o certo me sufoca, o que é fácil de ser lido se afasta naturalmente de mim. Vivo os pequenos momentos como se fossem grandes momentos. Não dou importância à previsões de alheios, afinal, a previsibilidade existe?
O relógio não me importa, o meu relógio me importa. Os excessos me comem como grandes leões entorpecidos pela fome. É tanto excesso que eu costumo me afogar nele, mas antes de me afogar, nado com prazer pelo mar revolto que construo dia após dia.
O meu cotidiano se baseia nas páginas daquele livro de Dostoiévski que está manchado de café, sim, o café que me acorda e que também me adormece. O meu cotidiano está na displicência bonita que somente os versos de uma poesia são capazes de transmitir. O meu cotidiano é pautado nas músicas altas que costumo pôr nos domingos melancólicos, para ensurdecer a minha melancolia. O meu cotidiano é tão efêmero quanto a mutabilidade do destino e disto eu sei desde muito cedo.
Toda quarta-feira é, para mim, uma quarta-feira de cinzas, é dia de se despedir da incoerência da segunda-feira, da terça e dos que andam a criticar a minha liberdade que se ascende mais com o decorrer dos anos.
Como aprendi em "Olhai os Lírios do Campo" de Érico Veríssimo, não se deve fugir da própria natureza, porque a própria natureza do ser humano é o que não lhe faz ser corrompido. Quando Eugênio, o principal personagem da obra de Veríssimo, fugiu de si, de quem sempre foi, tornou a encontrar a infelicidade e, sabem, é fácil achar esta tal, mas, afirmo-lhes com muita certeza que também é simples encontrar a felicidade, ela depende de como caminhamos e de como nos aceitamos.
Encontro na minha indisciplina a disciplina, como tantos que encontram na disciplina uma maneira de se indisciplinar. Encontro na melancolia um motivo para chamar a felicidade de volta. Encontro nas doses de uísque uma beleza insubordinada, mas subordinada aos meus lábios. Encontro nos polos opostos o desequilíbrio que me equilibra. Bonito mesmo é se saber humano e não fugir da humanidade imperfeita.
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