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Writer's pictureMaria Alice Gadelha

ELVIRA E FRANCISCO

Updated: Jan 22, 2023

Ela era artista, cresceu numa cidade pequena e pacata no interior da Paraíba. Sua mãe foi a responsável por doar criatividade ao seu sangue latino. Seu pai era algodoeiro e revendia algodão para todas as cidades da Paraíba. Era um homem fino, recatado e polido. Formavam um casal de dar gosto e que se completavam tão bem quanto o rio quando deságua no mar.


Na sua infância era serelepe, não parava quieta, o remédio para acalmar a menina foi só um: Colégio interno. Foi educada por freiras muito rígidas e que lhe pediam a mesma polidez de seu pai e o refino de sua mãe, que não por ser artista, tinha de sobra. Parece que não serviu e ela desandou, aprontava sempre com as freiras, e elas foram perdendo suas batinas na medida em que perdiam seus neurônios.


Elvira, a menina moleca, saiu do colégio interno e decidiu que iria cursar a faculdade de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Lá seria o mar para descarregar toda sua hiperatividade, senso artístico e inquietude para com os mistérios do mundo.


Certa vez, no jardim de sua casa, disse-me que quando saía da faculdade e ficava andando sem rumo pelas ruas do Rio de Janeiro, finalizava seu percurso indo até à Pedra do Arpoador, lá acendia seu cigarro e ficava observando a imensidão daquele azul, vendo o Cristo abraçar a cidade e tendo suas mãos próximas ao seu jeans, que por sinal, vivia quase sempre sujo de tinta.


Neste dia, também me falou que não entendia o porquê dos rapazes a olharem tanto, dizia que nem queria ser olhada ou desejada, que só queria viver, mas não é isso que os rapazes querem? Viver ao lado de quem traz uma paz sagrada? Uma paz suja de tinta, colorida?


A verdade é que ela era dona de um belo corpo, um rosto fino e forte. Tinha cabelos pretos na altura dos ombros. Chamava atenção com sua pele branca como marfim e tinha uma risada não tão alta, até um pouco tímida, mas verdadeira, daquelas que são boas de se ouvir. E foi por conta das tintas impregnadas em seu jeans que Francisco se apaixonou perdidamente por ela.


Francisco, nascido e criado em Sousa, no interior do interior da Paraíba, onde o sol beijava de maneira apaixonada toda a cidade. Morava numa casa que chamavam de “Casa Grande”, que de fato era grandiosa e branca, parecia que o dono era mesmo um senhor de engenho.


O pai dele, seu Zé, tinha a ver com o pai de Elvira, vendia algodão. Infelizmente, mais tarde, seu Zé assistiria toda sua plantação ser devastada pelo bicudo. O bicudo era um pássaro que veio a comer a riqueza que nascia de sua terra, porém que pertencia à natureza e não às foices de seus candangos.


Francisco nasceu numa casa cheio de mimos e com uma miopia desgraçada, por isso não largava seus óculos que cobriam todo seu rosto. Suas armações pretas e grossas pesavam a fineza de seus traços.


Vivia a remexer seus óculos. Era tímido, mas não porque queria, não era charme, como a timidez da risada de Elvira, ele queria falar, tinha ânsia por ser ouvido e apreciado, mas dividia a “Casa Grande” com outros 8 irmãos, imaginem só a falação…


Francisco resolveu cursar engenharia, porque seu pai disse que se não tinha talento para mentir e nem para ver sangue, deveria seguir pelos cálculos. Acho que de tão entediado dos cálculos, a vida deu a ele a missão de solucionar a equação mais difícil e gostosa de sua vida: Elvira.


Seu pai, José, havia pedido para que ele fosse negociar os preços de algodão com Seu Fleury (pai de Elvira) e ele foi, viajou para Campina Grande a fim de resolver este imbróglio. Durante a viagem, vendo a paisagem sertaneja, só pensava no quanto sua vida deveria ter mais alegria, mais sal e um pouco menos de sol.


Estava cansado dos cálculos, do calor causticante da natureza sertaneja, das ordens de seu pai e do que deveria ser seu futuro. Lá ia ele, em mais uma ordem de seu Zé, dialogar por algo que não era seu e que sequer desejava que fosse.


Chegando à Campina, deu de cara com uma casa suntuosa, bela, revestida em tapeçarias belíssimas e de uma arquitetura nunca vista. A casa era além de seu tempo e, o que viu, enquanto negociava com seu Fleury, ia além do que suas armações pesadas podiam alcançar.


Coincidentemente, à época, Elvira passava férias em sua casa e suas tardes se resumiam a pintar, escutar boa música e fumar metade de seu maço de cigarro a cada boa pausa artística que fazia. Vez por outra caminhava descalça pela grama molhada do quintal vasto e verde da casa suntuosa, amava sentir os pés reféns da terra.


Neste dia fatídico em que conheceu Francisco, estava nublado, a sala cheirava a café e sentia o aroma das rosas brancas que Dona Nilza, sua mãe, acabara de colocar num vasinho de cristal azul próximo à mesa central.


Ela desceu as escadas escondendo as mãos sujas de tinta, remexendo os cabelos bagunçados na medida e se envergonhando da camiseta branca, amassada e coberta de furos.


Interrompeu deste jeito a conversa de seu pai com aquele jovem que lhe parecia um senhor de 60 anos. Francisco olhou aquela força da natureza inebriado. Como podia aquela moça andar com tanta pose e ele só notar seus fios bagunçados e as tintas presas por quase todo seu corpo muito tempo depois?


A bagunça da moça lhe parecia um acessório essencial, a bagunça lhe deixava arrumada. Ele queria aquilo, aquela paz, aquela falta de pretensão, aquele ser que só era, que só existia. Apresentou-se a ela, mas ela lhe deu pouco cartaz, saiu de mansinho, pegou seus pincéis que estavam de molho num pote esquecido próximo à janela e se despediu.


Depois disso, Seu Fleury olhou para Francisco envergonhado e lhe disse que sua filha era diferente e que chegava em qualquer lugar sem avisar, sem cerimônias e de qualquer jeito também.


Pediu desculpas, disse que ela estava acostumava com os dias de artista que levava no Rio de Janeiro. Ele falou zombando, porém Francisco não entendeu a razão, era a coisa mais linda que já tinha visto em toda sua vida.


Tomou gosto por negociar algodão em Campina Grande, até seu Zé se espantou com tamanho esforço de seu filho e com a paixão repentina pelos algodões. Mal sabia ele que nas tardes que negociava algodão com seu Fleury, aproveitava a viagem para paquerar as pinturas de Elvira e Elvira.


Elvira caiu na lábia do rapaz tímido e velho demais de espírito para segurar o seu rosto de galã. Francisco passou a ficar além de tardes na casa pouco provinciana, passou a presenciar os jantares que dona Nilza dava.


Eram jantares fartos, regados de uísque, boa

música, gente estranha e bacana, comidas deliciosas e conversas que se diferiam de tudo que viu e ouviu no sertão causticante.


Elvira dedilhava no piano da sala de estar enquanto todos a assistiam impressionados, boquiabertos com o talento natural da moça. Dedilhava freneticamente inspirada pelo amor que crescia no peito. Beijaram-se. Tornaram-se um só numa destas noites.


Elvira voltou para o Rio, ele para Sousa, mas não aguentou por muito tempo, disse a seu Zé que seria uma boa ideia pesquisar os preços do algodão no sudeste. Catou os poucos paletós, os óculos pretos pesados e foi embora.


Na cidade maravilhosa, depois das reuniões longas que tinha com executivos tediosos, pegava sua moça suja de tinta na faculdade e a levava para passear por seus pontos preferidos do Rio. Em frente ao mar de Copacabana, com as montanhas íngremes e belas para assistí-los, misteriosas como aquele amor, como aquele mar, pôde pedir sua mão em casamento.


Ela aceitou, mas com uma condição: Deixe tudo e venha para o Rio. Ele aceitou, seu pai que não aceitou. Dizia precisar dele, ou precisava tê-lo debaixo de suas asas e, aquela moça, certamente não iria se fazer aquiescente das vontades do velho.


Desembarcaram em Sousa. Elvira causou na cidadezinha. Quase sempre agoniada com o calor de ferver o corpo. Num belo dia, por conta do calor, sentindo-se só e com saudades do Rio, saiu às 16h para arejar pelas ruas de Sousa e parou num bar. Pediu uma cerveja gelada e ficou a conversar com o dono do lugar. Logo a fofoca chegou até Francisco. Francisco, como você deixa? Sua mulher solta assim? Bebendo só? Isso é coisa de mulher que se preste?


Lá ia Elvira, indignada com aquelas cabeças para lá de fechadas, que mendigavam assuntos observando a vida alheia, observando a vida DELA.


Um dia, Francisco pediu para que ela fosse até a feira central comprar feijões para que pudessem preparar uma feijoada para alguns primos distantes que o visitavam, Elvira foi. Encantou-se pela feira, fez amizades com os feirantes, brilhou os olhinhos para os objetos feitos à mão e que eram verdadeiras obras de arte.


Comprou uma mesinha alta de madeira polida, que vinha com 4 tamboretes coloridos. Voltou para casa feliz da vida com os 4 tamboretes sortidos e a mesinha. Francisco amou! Porém não deixou de perguntar:



-Elvira onde está o feijão?



-Francisco!!! Esqueci-me, apaixonei-me pelos tamboretes.



A feijoada aconteceu, às pressas, à maneira dela, mas com graça e divertimento e, vejam só: Os tamboretes se tornaram o desejo dos casais que os rodeavam. Francisco apenas ria e se divertia, pensava: Com esta mulher, a alegria sempre há de me encontrar.


Mal sabia ele que o destino lhe prometia quatro filhas, alegres como Elvira, que como os 4 tamboretes seriam coloridas e festivas. Assim foi, veio a filha azul, a laranja, a vermelha e a rosa. Cada uma com seu jeito, com sua particularidade.


Eu queria dizer a vocês que eles viveram felizes para sempre, mas a verdade é que não existe essa história do viver feliz para sempre, a felicidade não é uma constância, é como uma pérola, temos que lutar por ela e é por isso que a vida vale a pena ser vivida. A vida é rara, a felicidade também. O que temos de constância na vida são as surpresas, a cada dia, uma nova, que nos faz enxergar a magia do viver.


O que posso dizer da vida de Elvira e Francisco é que é e foi uma eterna surpresa, por isso que é tão deliciosa e apaixonante, por isso que escrevo sobre. A vida de um é a de outro, é uma só. Tem gosto de uísque, som de casa cheia, melodia de pássaros, cheiro de rosas e amor de sobra.


Hoje estão com seus cabelos brancos, Francisco nem tanto, está carente dos fios… Elvira toca piano vez por outra, coleciona revistas de arte nas prateleiras das salas de casa, recebe as filhas constantemente, recebe os sobrinhos e os netos.


Escuta histórias e dança com elas. Modifica a casa a cada novo humor. Francisco não trabalha mais com algodão, hoje é executivo, apaixonado por Lula, por política, por jovens, por tecnologia e pela arte. A maior paixão de sua vida? Vocês já sabem qual é.


Quando chego para os almoços que eles costumeiramente fazem em dias de domingo, sinto a mesma paixão de sempre, a controvérsia do sol e da lua, ambos discutindo para contar as mesmas histórias e incrementar uma nova vírgula. Ele geralmente se cala e ela continua, deixando suas histórias mais cheias de graça.


E foi no jardim da casa deles, na casa em que ela morou por toda sua vida, que casou e teve suas 4 filhas, que me contou um pouco da história deles. Ela olhou pro jardim vasto da casa e disse: Era maior antigamente para meus olhos. Hoje é pequeno diante de tanto amor que sinto, de tanta gente que faz festa neste gramado.



MARIA ALICE GADELHA


PARA TIA ELVIRA E TIO BUEGA, O CASAL MAIS CHARMOSO QUE CONHECI EM TODA VIDA.

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2 Comments


terezaraquelbritof
terezaraquelbritof
Jan 27, 2023

Maravilhoso! Estou apaixonada por sua escrita, devoro cara parágrafo com pressa e ao mesmo tempo sem querer que a história acabe. Parabéns

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Corrinha Robinho
Corrinha Robinho
Dec 09, 2022

Estou encantada com a história...Continuarei lendo. Parabéns!

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