Com as janelas do táxi abertas, o vento da selva de pedra batendo forte em seus lisos fios, com destino ao seu novo lar, Mia tinha dentro de si uma sensação de ter esquecido algo na mudança do seu antigo apartamento.
Não passava por sua cabeça o que fosse, já que por ser tão desatenta, havia adquirido o hábito de fazer listas a fim de nada passar batido e, por isso, tinha conferido algumas muitas vezes os itens que se instalavam no caminhão de mudança.
Estava deixando o Brooklin para morar na Consolação. Lá, esperava mesmo que fosse consolada, como na música de Tom Zé.
A noite em seu novo espaço se fez insone. Perambulava entre a bagunça das roupas, das malas entreabertas, tropeçava em uns poucos livros e entre um cigarro e outro, pensava no que José estava fazendo naquela madrugada, como seria o seu canto de agora? No que pensava?
Estavam na mesma cidade, mas separados por muitas mágoas e sabem, as mágoas fundadas na juventude são frutos que amadurecem rápido demais e apodrecem na mesma proporção.
Na juventude tudo é possível, os caminhos são variados e é por isso que os desencontros acontecem. Mia soube que o desencontro nasceu no momento em que pisou os pés na madeira maciça do seu novo apartamento.
Naquele dia, adormeceu beirando às cinco horas da matin, sabia que naquela hora já tinham muitos paulistas fazendo a caminhada do nascer do sol, afinal, em São Paulo, o tempo é mais precioso do que em qualquer lugar do país.
Acordou de supetão com o despertador estridente, já havia demandas a cumprir e como a intuição de Mia não costumava falhar, havia uma mensagem em seu telefone do zelador do antigo apartamento. Acabava por lhe avisar que ela esquecera uma resma de papel ofício, uma manta grossa e uma extensão.
Era a extensão que lhe fez ficar matutando sobre o que esquecera 24 h antes. Ela disse que voltaria para pegar, mais pela extensão do que pela manta que tanto gostava. O dia lhe foi intenso, só conseguiu ir ao Brooklin às nove da noite.
A porta estava aberta, tudo silencioso, um breu total. O apartamento estava vazio, parecia maior, como tudo que fica vazio aparenta ser. Antes de pegar os itens esquecidos, sentou-se no chão da varanda, retirou um maço de cigarro do bolso da calça jeans e acendeu um dentre os poucos que restavam.
Seria o seu último ali, depois de tantos tragos que já havia dado naquela vista do vigésimo andar, que apontava pros arranha-céus que tentavam atrevidamente alcançar as estrelas e à lua. Mia e José haviam passado um ano naquele duplex. Haviam se apaixonado um ano antes.
Mia conhecia José da escola que estudou por quase toda sua vida. Lembrava dele tímido, junto de um grupo de meninos nada quietos. Ele era o cara acanhado do grupo.Mia jamais se apaixonaria por ele, não naquela época.
Mia sempre gostou de rapazes malandros, com queixos cortados no meio - Um sinal, que, segundo seu pai, era um traço de quem mente. Gostava de rapazes que lhe dissessem que não havia limites até o céu. Gostava dos caras que a comiam com o olhar, que a beijavam em pensamentos e que não tinham medo nenhum de receber um não.
José não era assim, as coisas para ele eram certas, concretas. Seus pés se mantinham no chão independentemente de qualquer que fosse ele, de concreto ou de areia do mar, nos dias de ressaca. No entanto, gostava de desafios.
Ainda que lhe parecessem distantes, sabia que um dia alcançaria todos que colocasse em mente. Tinha desdém por gente que se satisfazia com o raso, com o pouco, com a monotonia da vida. Queria mais, uma aventura, quem sabe.
Talvez tenha vindo daí o seu interesse pela lógica, a sua decisão de ter partido para o mundo das exatas. Ele gostava de construir, reconstruir e de solucionar mistérios que pareciam irresolutos para tantos.
Mia era um mistério, as pessoas tinham de se aventurar muito até chegar à pérola dentro da ostra que era seu coração. Parecia simples, só parecia. Era sorridente, abria-se pro mundo como as aves abrem suas asas para voar, era de sua natureza. Havia uma paz e um caos que se misturavam bem naquele corpo miúdo.
Passados os anos de escola, eles se reconheceram. Passaram a trocar mensagens por toda a madrugada e para ela, no início, era apenas um passatempo, uma conversa gostosa demais que não dava para se pôr um fim.
Encontraram-se.
De cara, ele foi estranho, não parecia o José das conversas. Ela também agiu com estranheza, apesar de toda sua simpatia quase que obrigatória com todos. Num momento da noite, ela desceu às escadas da casa que estavam para beber água, ele a seguiu, ela não sabia que estava sendo seguida, quando soube, virou de costas e era ele, com a expressão de quem quer devorar com os olhos.
Beijaram-se.
Desde este dia, tornaram-se inseparáveis. Eram, além de namorados, melhores amigos. Tagarelavam a todo tempo, bebiam juntos até o amanhecer, passavam horas e horas colados, feito tatuagem, sem dizer uma palavra, apenas num silêncio bom, raro e que não causa constrangimento. Ambos sentiam uma intimidade que parecia vir de outras vidas.
A verdade é que Mia nunca se apaixonou por José, ela o amou, desde o início. José se apaixonou perdidamente e o amor veio depois, talvez esse tenha sido o erro. Apaixonar-se é ter em mente idealizações. Mia nunca teve, Mia apenas o amou e isso, estranhamente, nunca lhe havia acontecido.
Ela lhe disse que ia embora para São Paulo, que o nordeste não mais lhe servia. Ele veio com ela logo depois. Ela foi lhe pegar no aeroporto e eles começaram a viver uma vidinha de casados. Era um sentimento de esperança e de amor que passaram a semear juntos.
Acharam o apartamento perfeito, o bairro pacato como a vida que José gostaria de ter. As programações eram cinema após o trabalho, vinho juntos numa quinta-feira exaustiva e ir, vez por outra, num bom restaurante.
A suavidade do início fora desaparecendo paulatinamente, com os tantos pedidos que José fazia a Mia. Mia era uma televisão e ele era o controle remoto. Ele queria ver na televisão que implantou em sua própria cabeça, sua namorada a correr no parque às seis da matina.
Era incapaz de compreender que Mia corria constantemente em sua própria cabeça, nas noites em que bebia vinho solitária, pondo todos os sentimentos em papéis que se perdiam como tudo que se perde com facilidade no calar da noite.
Havia uma idealização que ele mesmo projetou. Mia era a mulher livre que ele desejou desde o início, a mulher atrevida e corajosa por quem se apaixonou. Ele não desejava a monotonia, mas passou a desejar. Cada dia mais sua fome por monotonia aumentava. A rotina de Mia deveria ser igual a dele ou, minimamente parecida.
Incomodava-se quando decidiam almoçar num sushi e noutra hora, Mia lhe sugeria uma massa. Com ela, pôde mudar e mudou muito, mas não suportava as mudanças que naturalmente acontecem numa vida à dois.
Mia passou a se entristecer. Não notava mais os olhares carinhosos de outrora. Constantemente escutava palavras demasiadamente duras, mas que se acostumou a engolir. A garganta da jovem mulher foi ficando seca, entupida das falácias de todos os dias. Pensava: A culpa de sua infelicidade era dela?
Numa noite, Mia chegou em casa e ele já estava dormindo. Aproximou-se de seu rosto para lhe dar um beijo carinhoso e lhe dizer o quanto o amava, José apenas a afastou e disse que precisava de espaço. Ela desceu as escadas do duplex, sentou-se na varanda e choramingou em silêncio. Era o fim. Numa mesma casa havia uma distância incalculável entre dois corpos que antes eram só um.
Assim o fim foi se fazendo. Um fim de concreto, o mesmo concreto em que os pés de José estavam arraigados e que sempre estiveram. A casa se tornou um silêncio nos dias de guerra fria.
Uma das últimas frases que disse a Mia foi que a vida não era um filme, como ela gostaria que fosse. Ela não entendia. O filme imita a vida, a arte imita a vida e como não compreender que todos temos um roteiro, que somos nós os escritores destes roteiros?
Roteiristas precisam de sensibilidade, precisam estar atentos aos outros, aos personagens que se cruzam e às suas característica tão singulares. Isto é a vida, isto faz o filme da vida ser belo. É sobre sentir, sobre viver a monotonia com paixão e ver a beleza nos mais simplórios cenários do cotidiano.
Ele a deixou. Quando se foi, Mia perguntou se poderia ficar com a extensão que ele havia comprado para os dois. A extensão foi comprada no sentido de que eles não precisassem mais afastar a cama para carregar computadores e celulares, pois a tomada ficava atrás do móvel. Mia nunca havia pensado em comprar uma extensão, para ela estava tudo bem em afastar a cama.
Depois de um certo tempo, entendeu que a extensão era um laço entre eles. Ele era a extensão dela, do que desejava ter dentro de si. Desejava a paz, a coragem, a calma e a certeza que ela lhe dizia sempre, de que o que tem de ser tem muita força e que não era válido se frustrar com as minúcias que a vida apronta no correr das semanas.
Ela compreendeu que também era uma extensão dele, desejava por vezes ter os pés arraigados na terra firme, desejava correr no parque às seis da manhã, desejava ter a racionalidade pulsante dentro de si. Eram a extensão um do outro, um fio os conectava, apesar de conduções elétricas distoantes correrem por ele.
A verdade, é que, em matéria de amor, muitos casos não dão certo pela exigência de que o outro seja, egoisticamente, uma extensão de nós mesmos. Mas o amor não deve, não pode e nunca durará, se não for tenro e, principalmente, dotado de complacência.
Quando Mia entendeu que ele se foi e ainda passou uns meses no duplex, sozinha e triste, numa noite em que tomava seu cabernet, pensou no quanto sua vida já se reconstruiu, em quantas rotas já não seguiu e contornou. Em quantas fogueiras teve de atravessar, transbordando em água, para que se apagasse.
Alucinada por recomeços como era, retirou a foto dos dois do porta-retrato que se mantinha numa estante cheia de livros e a trocou por outra, com seus amigos. Segurou a foto deles entre os dedos e relembrou o momento em que ela fora registrada. Era uma foto em que ela lhe beijava as bochechas e ele lhe abria um sorriso leve. Pensou em como tudo muda, com razão ou não.
Apesar de ter retirado a foto do porta-retrato, prometeu a si mesma que guardaria aquele momento, aquela sensação de leveza, de intimidade suprema, de um amor que um dia existiu e que sim, apesar de tudo, foi bonito e cheio de histórias, como num filme, José querendo ou não.
Mia estava pronta a dar início ao novo roteiro de sua vida. Antes de fechar a porta do apartamento, bateu uma foto com os próprios olhos do duplex vazio e saiu, mais livre do que nunca.
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