Sou um animal noturno, não tenho asas mas gostaria muito de tê-las, para alçar voos largos quando algum sujeito resolvesse me criticar por ser insone, por ter um passo lento e que beira a despreocupação, e se torna, às impressões alheias, um passo pretensioso, contornado de arrogância.
Não consigo passar despercebida, apesar de tantas vezes querer. Vacilo ao ter opiniões sinceras demais, que ao adentrar nos ouvidos dos meus interlocutores se metamorfoseiam de palavras a navalhas, ferindo impiedosamente estes que me escutam com vontade.
Tenho olhos expressivos como os de um felino, porém não pertenço a tal sábia espécie. Meus olhos têm em si uma insaciável fome de profundidade, atraem-se por olhos oceânicos, com manias de grandeza, manias de esperança e por isso cheios de ternura também, não tardando a transbordar a qualquer segundo. Olhares que se conversam, são estes que procuro.
Farejo como uma fera o aroma frutado do vinho em plena quarta-feira, posto que não tenho horário certo para me fazer aquiescente do entorpecer que carrega uma garrafa. Nos dias em que acordo a contragosto às sete da matina, faço de meu batom as borras do café coado que fervo assim que desperto, pois só assim para aguentar os feixes de sol que tentam timidamente me tocar a pele. Farejo fumaça também, mas tomo o cuidado secreto de não me deixar incendiar pelo fogo, porque por pouco não me viro em chamas em tantos os momentos do cotidiano.
Tenho uma certa aversão aos cenários supérfluos, a toda essa gente que mora na superfície. Sou amante dos peixinhos e de seus nados corajosos em busca de sobrevivência. Eles se lançam sem pestanejar, pela ignorância ou não, á uma irracionalidade brava. São pequeninos mas instintivos, nadam às pressas com altivez contra os delírios dos grandes peixes e convivem com sua ganância no misterioso mar.
Entro em rodas de samba como um beija-flor, num canto exótico e fino característico meu, um pouco destoante dos que procuram a harmonia dentro de uma canção. É que para mim, a arte nunca fora harmoniosa, ao contrário, alimenta-se da unicidade que traz reflexões contundentes a alguma esfera que faz parte do nosso ser. Como ela, tento dialogar com o caos que rege o mundo, cautelosamente a não me perder nele.
Sou também preguiçosa, faço arte quando a inspiração me chega de surpresa como uma doce sortida. Na maior parte do tempo fico à flor da pele sem querer, distraindo-me, deixando-me guiar pelo destino a minha procura, não eu em busca do destino, isso não!
Gasto dinheiro e tempo em cafeterias esquecidas nos centros das grandes e mudas metrópoles. Encontro sebos no meio do percurso e me deleito com as dedicatórias de indivíduos que nunca vi na vida, que nunca escutei falar e que por isso, fantasio estas a meu modo, ao meu pensar.
Quem seria a Rita que o Pedro dedicou palavras tão lindas numa contracapa de um livro de Drummond? Tento conhecê-los sob o comando de minha mente, furto o passado deles num estalo e demando tanto tempo devaneando nestas vidas que o dono do sebo vem ao meu encontro, perguntando-me se levarei o livro ou não. Então, levo para casa um pouco destas vidas comuns comigo, cuido do livro como se fosse uma rara relíquia.
Gasto dinheiro nos botecos cheios de bêbados, escuto suas conversas com perspicácia, sem certeza do que dizem, porque como eu, eles cospem seus corações sem pudor, em mesas cheias de vazio, que mais parecem um divã de uma sala de terapia do que um objeto de bar.
Tenho uma crença demasiada no mundo. Para mim, a fé desentope as artérias e a descrença, apesar de teórica, causa um tumor maligno, por isso me protejo dela. Cego-me lendo a bíblia, o alcorão e outros livros sagrados, porque sendo ou não suas histórias verídicas, carregam ensinamentos de amor e de sabedoria. Eu desejo este amor, esta sabedoria curiosa por toda a vida.
Sigo sabendo que sou humana, mas tenho instintos que me ardem a ponto de me deixar agir por eles. Por conta disso, sou também um animal, de paixões. Um animal esquisito, um animal intenso, animal que preenche um pouco o requisito de participação em cada espécie. Sigo sendo, sem saber, mas procurando em cada brecha deste universo um pouco de mim nele.
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